
Tanto reconhecimento deve-se à genialidade com a qual é conduzida a trama, envolvendo o espectador em uma teia de suspense e jogo psicológico, onde a mente é a prisão, a mentora da farsa e a criadora do ápice da tensão. Todo o suspense da obra de Hitchcock é permeado por dramas psicológicos, quase que uma sessão de análise vista não no divã, mas nas páginas policiais, nas seqüências de um dominó mental que gera crimes de impacto.
Nos labirintos da mente, o detetive John Ferguson, numa magistral interpretação de James Stewart, vê-se limitado por uma acrofobia frenética, levando-o ao pânico todas às vezes que é confrontado com situações que o põe em lugares longe do chão. A inteligência aguda do detetive esvai-se na prisão da mente, traduzida na vertigem (vertigo) que dá título ao filme.
Do outro lado do espelho, Kim Novak divide-se em três personalidades que se confundem, a falsa Madeleine Elster, mulher perturbada, caminhando no limiar da razão e da vida; a desprotegida Judy Barton, conduzindo-se pela força romântica do amor; e, a Madeleine Elster recriada por Judy para não perder o amor de Ferguson.
A mente é quem comanda o que se acredita, o que se é e o que se acredita ser. No meio do jogo psicológico, o espectro do crime, a manipulação da verdade, suavizado pela presença súbita e inesperada da paixão, do romance que se oferece nas reticências de cada um. Numa trama complexa, Hitchcock conduz o suspense com maestria e objetividade, sem que se perca nas teias das vertigens das personalidades múltiplas dos protagonistas.
“Vertigo” tem os elementos fundamentais da obra do mestre, a loira misteriosa, às vezes ingênua, outras sedutoramente fatal. O homem inteligente e obstinado, preso nas limitações da mente e nas armadilhas do amor. O suspense que conduz ao ápice da tensão. O mistério, a trama criminal, a morte e a solução do enigma. E claro, a presença habitual dele próprio, surgindo de relâmpago aos onze minutos do filme. Os ingredientes habituais, que se renovam sempre a cada filme pela genialidade de Hitchcock em conduzir como ninguém uma câmera e uma idéia.
A Proposta de Gavin Elster

A trama narra a história do detetive John “Scottie” Ferguson (James Stewart), marcado pela tragédia de perder um colega durante uma perseguição que se desenrolava em cima do telhado. Preso em uma calha, Scottie assistiu ao colega despencar do alto, sem poder ajudá-lo. O trauma acentua-lhe uma acrofobia, tornando-o incapacitado para enfrentar situações que exijam estar em lugares altos. Diante do problema psicológico, Scottie retira-se da polícia.
Seu cotidiano de aposentado sofrerá uma alteração, quando um dia recebe o telefonema de um velho amigo de colégio, Gavin Elster (Tom Helmore), no presente um magnata da indústria naval, propondo-lhe um encontro. Inst

Durante o encontro, Gavin Elster explica que deseja contratar os serviços de detetive do amigo, para que siga a sua mulher, Madeleine Elster. Gavin revela que não suspeita de adultério por parte da mulher, o que o afligia era o fato dela estar visivelmente perturbada, apresentando tendências suicidas. Madeleine parecia herdar a maldição da sua antepassada, Carlotta Valdes, uma mulher que ao ser abandonada pelo amante e perdendo a filha pequena, enlouquecera e suicidara-se. Gavin revela que Madeleine revivia os problemas mentais da antepassada, muitas vezes tomando-lhe a personalidade, pensando ser a própria Carlotta.
Gavin quer que o amigo siga a mulher, pois teme que ela cometa suicídio. Mas Scottie hesita em aceitar o trabalho, recusando-o a princípio. Ele mudará de idéia, quando ver Madeleine Elster (Kim Novak), em um restaurante.
O Mergulho na Baía de São Francisco

Kim Novak exala sensualidade e mistério, emanando uma beleza labiríntica, pronta para atirar qualquer apaixonado ao precipício. Hitchcock tinha pensando em Vera Miles para o papel, mas uma gravidez inesperada afastou a atriz do projeto, fazendo com que a escolha caísse sobre Kim Novak, aqui a desdobrar-se em personalidades plurais, numa interpretação irrepreensível.
Scottie passa a seguir Madeleine por

Inconsciente, Madeleine é levada para o apartamento de Scottie. Quando recupera os sentidos, mostra-se agradecida ao homem que lhe salvara. Entre os dois nasce um fascínio irresistível, fazendo com que passem a se encontrar muitas vezes, tecendo uma intimidade tensa, movida pelos mistérios da alma de Madeleine, flutuante e quase que inatingível.
Pela Janela da Torre, Um Corpo Que Cai

Em um dos encontros entre Scottie e a mulher do seu velho amigo e cliente, ela fala dos sonhos estranhos que vem tendo, passados sempre no alto de uma torre com um sino, em uma vila espanhola. É como se através dos sonhos, ela vivesse a vida de Carlotta Valdes, sua infeliz antepassada que vivera no século XIX, mostrada pintada na tela de um quadro.
A descrição da torre com o sino, faz com que a personalidade investigativa de Scottie aflore. Ele deduz que o lugar dos sonhos de Madeleine existe, reconhece-o como sendo a Missão Espanhola de São João Batista, situada a alguns quilômetros ao sul de São Francisco.
A atmosfera psicanalítica da trama conduz as decisões que se irão emaranhar em uma teia. Como numa sessão de análise, Scottie conclui que

Juntos, o casal dirige-se para a Missão Espanhola de São João Batista. Quando tudo parece caminhar para o acerto da mente e a quebra dos seus porões, o imprevisto acontece. No local, Madeleine descontrola-se. Corre para a torre e começa a subir uma longa escada de madeira. Scottie corre atrás da mulher, ao tentar alcançá-la, é acometido de uma crise de acrofobia. Paralisado, sem conseguir conter o medo, Scottie assiste atônito, através de uma das janelas, a queda de um corpo. Era Madeleine, que parecia cumprir o destino de sua antepassada Carlota Valdes, atirando-se do alto da torre, numa queda mortal.
O Segredo de Judy Barton

Hitchcock conduz a narrativa de maneira contundente, mudando a iluminação toda vez que um acontecimento importante vai acontecer. Quando tudo parece disperso e preso à obsessão doentia pela lembrança da morta, uma nova e explosiva surpresa invade o cotidiano melancólico de Scottie. Ao entrar em uma floricultura, ele vê caminhar na calçada uma mulher muito parecida com Madeleine. Atônito, confuso e obstinado, ele segue a misteriosa mulher até onde ela mora. Descobre que a estranha chama-se Judy Barton, que veio do Kansas e trabalha como vendedora na Magnin’s.
A jovem, fisicamente idêntica a Madeleine, traz um semblante mais simples, típico do interior, sem o glamour misterioso da mulher morta, sem as nuances de angústia e perturbação latentes.

Mas nada é linear neste filme, pelo contrário, tudo é complexo, tecido em armadilhas psicológicas que se interligam a cada cena. Inesperadamente Judy Barton olha para a câmera, umflashback rasga a cena, fazendo com que a jovem divida o seu segredo com o espectador. É revelada a sua participação no plano de Gavin Elster para assassinar a mulher. Judy Barton foi contratada para fazer-se passar por Madeleine diante de Scottie, assegurando que ele testemunhasse o seu suicídio. Enquanto ela distraía o detetive, a verdadeira Madeleine era assassinada pelo marido, atirada do alto da torre.
No fim das lembranças reveladoras de Judy Barton, ela decide contar toda a verdade a Scottie, escrevendo-lhe uma carta. Na confissão escrita, ela dizia que o único erro do plano tinha sido o fato de ter se apaixonado por ele. Mas em um ímpeto, Judy Barton corta a carta em pedaços.
Mais tarde Hitchcock revelaria que este fora o momento crucial para ele, que ficara em dúvida entre o suspense e a surpresa. Ao optar pela surpresa da revelação, ele conduz a narrativa do filme através da pergunta de como Scottie iria reagir ao saber da verdade.
A Obsessão de Scottie

Os jogos das paixões e desejos desencontram-se das personagens, que vivem os seus sentimentos fragmentados na visão diferente do objeto de amor de cada um. Enquanto Judy vive o seu amor pleno por Scottie, ele ama cada vez mais a Madeleine que um dia ela fora. Ela ama o homem. Ele ama a imagem, o mito, a lembrança, o desejo de tocar Madeleine mesmo depois da morte.
A obsessão de Scottie por Madeleine faz Judy sofrer. Mesmo assim, para agradá-lo, ela aceita transformar-se em Madeleine, vestindo-se a pedido dele, como a morta. Numa das cenas mais marcantes do filme, Judy sai do banheiro coberta de luzes de néon verde, acentuando a transformação em Madeleine. Ao vê-la transformada, os olhos de Scottie brilham, explodindo uma tristeza quase que a gerar uma lágrima, um sentimento de perda ao saber que a Madeleine que tanto deseja está ali, em corpo, mas numa alma etérea, que ele jamais alcançará. Scottie tentará,

James Stewart leva a obsessão de Scottie ao extremo, dando-lhe um rosto às vezes assustador, até mesmo cruel, quando Judy implora para que ele não a obrigue a pintar os cabelos da cor dos de Madeleine, e ele quase que lhe agride. É preço que ela tem que pagar pelo crime do qual fora cúmplice, a expiação pela culpa de não revelar a farsa que era o objeto de obsessão do amado. James Stewart revela a outra face de Scottie, numa interpretação magnífica que o distancia da imagem tradicional de bom moço, do bom americano que se lhe fincara ao longo da carreira. Imagens densas são extraídas do seu rosto, pontuadas com a tensão de uma frenética trilha sonora, na magnificente música de Bernard Herrmann.
Outro Corpo Que Cai

O momento da descoberta de Scottie, tão aguardado desde a cena em que Judy revelara o seu segredo à platéia, conduz ao desfecho final da trama. O detetive descobre que fora usado por Gavin Elster. Fora escolhido para testemunhar a morte da verdadeira Madeleine, sem que pudesse interferir, pois o amigo assassino sabia da sua acrofobia, fator fundamental para que se montasse a farsa.
Ciente da verdade, Scottie convida Judy para jantar na Península. Num ardil final, ele a leva de volta onde a farsa fora arrematada, à Missão Espanhola de São João Batista. Judy percebe que o momento da confrontação final chegara.
Diante da torre, Scottie pede que Judy seja Madeleine por alguns momentos, tendo como objetivo tentar acendrar todos os seus m

Mas a subida da torre não funciona apenas como a revelação da verdade, é a confrontação final da psicanálise com os medos. Durante a subida, a última vertigem não vem. Scottie continua desperto, sem paralisações. Descobre que no turbilhão das emoções pelas quais passara, vencera a acrofobia. Voltar ao local do seu último medo e desequilíbrio emocional exorcizara-lhe os medos, em um último conflito entre o corpo e a mente. Estava curado.
No topo da torre, Judy insiste que o ama. Que o sentimento por ele fora a única verdade de toda aquela farsa. Scottie rende-se finalmente a ela, não ao fantasma de Madeleine. Os dois abraçam-se e beijam-se apaixonadamente, unidos pela verdade de cada um, sem as máscaras, sem a pluralidade da alma.
Mas nada em “Vertigo” é maior do que as impressões da mente. Quando a trama se arrasta para um final feliz, um espectro surge vindo do barulho de

“Vertigo” é um dos filmes que mais impregna o estilo de Alfred Hitchcock. Na época obteve duas indicações para o Oscar, nas categorias de melhor som e melhor direção de imagem. O Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha, deu ao filme os prêmios de melhor diretor a Alfred Hitchcock e melhor ator a James Stewart. Na época do seu lançamento não chegou a constituir um sucesso estrondoso, sendo descoberto depois, tornando-se o filme mais cultuado pelos admiradores de Hitchcock. No decorrer do tempo, os negativos originais de “Vertigo” deterioraram-se em conseqüência de uma má conservação. Em 1996, foi totalmente restaurado por James Katzos e Robert Harris, num processo que custou um milhão de dólares.